O constituinte de 1988 buscou reparar profundas injustiças sociais. Para isso estabeleceu um complexo sistema de solidariedade denominado Seguridade Social, composto por três frentes: previdência, seguridade e assistência social. Esse mecanismo é suportado por impostos, tributos e contribuições diretas do patrão, do empregado e do próprio Estado. Nele há mais de 30 milhões beneficiários, responsável por 24,38% dos gastos públicos1. Seu modelo solidário garante que o trabalhador acesse o benefício de pelo menos de um salário mínimo. Sua importância econômica é apontada por estudos como aquele realizado pelo Observatório da Agricultura Familiar2 ao atestar que o impacto da previdência nos municípios cearenses chega até 40%.

Ao contrário da cartilha liberal, em épocas de crise é preciso aumentar a participação do Estado na economia. Mas nossa subcidadania3 responsabiliza diretamente os oprimidos como forma de manutenção do velho sistema. Sua libertação – leia-se cidadania – nunca esteve no centro da política. A rentabilidade muitas vezes espúria parece está acima do essencial. L. Boff (2009:23)4 atesta que “o atual modelo social não consegue criar riqueza sem ao mesmo tempo gerar uma massa infinitamente maior de pobreza”.

POR QUE “REFORMAR” A PREVIDÊNCIA?

O discurso bem articulado da reforma da previdência é repetido na grande mídia e reproduzido por muitos parlamentares, mas está eivado de mentiras. Segundo a narrativa predominante sem a reforma à previdência sucumbe. Na verdade, trata-se de danosa mentira disseminada pela classe5 dominante de tal modo a fazer as outras classes aceitarem pagar uma conta forjada na rapinagem do sistema financeiro por meio da dívida pública.

O Sistema Financeiro Nacional – SFN – é um verdadeiro paraíso fiscal cuja principal característica é a não regulação. Seus múltiplos mecanismos são cuidadosamente tratados as escondidas de tal forma a permanecer distante do grande público. Para ficarmos em um exemplo, apresentamos a Securitização dos Créditos. Esse instrumento é responsável por boa parte da composição do Estoque da dívida pública6. A figura 1, desenha o caminho da securitização e como ela se transforma em dívida pública.

Observe como os bancos oferecem seus créditos para os agentes econômicos – empresa e pessoas – e ao final de um tempo, empurram para os cofres públicos suas sobras de caixa remuneradas pela taxa Selic7. Ou seja, a securitização dos créditos é uma ameaça para a economia real8. Um mecanismo de rapinagem em que o governo compra dinheiro dos bancos e nós pagamos via dívida pública.

A figura 2 revela o resultado da dívida pública em 2018, em relação ao investimento em setores essenciais. Ao lado, a figura 3, ver-se o principal mecanismo da união para prover o pagamento do estoque da dívida.

Chame atenção para o procedimento administrativo denominado de D.R.U9 que permite pagamento da dívida pública com recursos extraídos da previdência10. Na realidade, a previdência possui superávit. No inicio de 2019, o decreto presidencial 9.699/19 autoriza a transferência dos cofres da previdência a quantia de R$ 602 bilhões de reais para pagamento de juros da dívida pública. Entendeu porque da harmonia nos discursos para reformar à previdência?

AS CONSEQUÊNCIAS?

As consequências dessa reforma serão desastrosas! A figura 4, elaborada por pesquisadores11 sérios, atestam que os investimentos públicos irão despencar até 2035, fruto da famigerada reforma da economia12.

Chame atenção à última linha ao apresentar investimento crescente em previdência. Há aqui duas razões: a primeira é a própria dinâmica demográfica. A população brasileira está ficando naturalmente envelhecida, graças às políticas de inclusão e acesso que sustentaram certa qualidade de vida. Os dados do IBGE13 são reveladores ao indicar aumento na expectativa de vida no período de 1990 a 201014. Na contra mão tem-se a segunda razão assentada na redução do Estado de Bem-Estar – principalmente nas áreas de saúde e educação. A simples redução do estado exigirá que o indivíduo recorra ao sistema de seguridade para manter viva sua dignidade.

Sabedor dessa dinâmica o governo age para desmontar o sistema de solidariedade da previdência, pois seu real interesse é manter compromissos com o setor financeiro. Será comum assistirmos ao novo êxodo rural – com outras conotações, como violência urbana, exposição às mazelas do tráfico de drogas e assim por diante. Novos bairros precarizados deverão ser erguidos sem que qualquer infra-estrutura possa ser-lhes garantida.

O modelo individual de capitalização ataca os mais pobres. Os níveis de desigualdade, seguida dos índices de exclusão deverão afetar os mais vulneráveis, especialmente os idosos e as crianças. De forma covarde expõe a mulher a um profundo retardo social nivelando a idade para contribuição por tempo de serviço em 40 anos. Outro afetado será o agricultor. Este depende do ciclo chuvoso que nem sempre é regular, não sendo regular também sua produção e renda. Como irá pagar R$ 600,00/ano durante 20 anos? O Benefício de Prestação Continuada – PBC, será reduzida para R$ 400,00, que assim como a aposentadoria não está prevista qualquer indexação ou ajuste. O PIS/PASEP, atualmente destinado ao quem ganha até dois salários mínimos, será reduzido para quem recebe apenas 1 salário.

Trata-se do fim do sistema solidário decretado pela substituição de outro baseado na capitalização individual. A experiência do Chile atesta que passados 30 anos àquela população está se defrontando com uma realidade duríssima tendo que aceitar receber apenas 60 a 75% do salário mínimo. É o fim da previdência na sua característica solidária.

A MÁ GESTÃO

Além de ser gerenciada para outras finalidades a previdência enfrenta um sério problema de gestão. Aqui é apontado três dos principais problemas. (i) Baixo acesso e contribuição. Ladislau Dowbor ao interpretar os indicadores sociais do IBGE15 estima que apenas 33 milhões de pessoas contribuem para o sistema previdenciário. Ver-se 50 milhões de pessoas condenadas a informalidade e 12 milhões desempregadas. (ii) Estado pequeno diante da demanda social. O estado brasileiro é pequeno se considerado a quantidade de funcionários públicos, pessoas economicamente ativas, e a população em geral. A OCDE16 indica que o estado brasileiro possui uma relação muito tímida quando a quantidade de funcionários públicos é comparada com a sociedade economicamente ativa e a população em geral. (iii) A danosa política de incentivo fiscal e sonegação fiscal17. Dados oficiais atestam que entre sonegação e isenção de grandes investidores há saldo negativo de 800 bilhões nos cofres da previdência.

CONCLUSÕES
Aqui tratamos alguns dos pontos mais importantes que seguem devidamente listados: (i) Acabar com a política de desonerações fiscais (ii) cobrar a inadimplência (iii) realizar concurso público (iv) Eliminar a política econômica que gera dívida pública, como a securitização dos créditos. Ou aceitamos enfrentar as reformas tributária e fiscal, ou estaremos diante da maior produção de miseráveis de nossa história recente.

Referências

1 www2.camara.leg.br/orçamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loas
2 Observatório da Agricultura Familiar – S.D.A 2019.
3 SOUZA, J. (2018) Subcidadania brasileira – para entender o país além do jeitinho brasileiro. Leya, Rio de Janeiro.
4 BOFF, L. (2009) Ética da Vida – A Nova Centralidade. Ed Record, Rio de Janeiro – RJ
5 Ver SOUZA, J (2017) A Elite do Atraso: da escravidão a lava jato. Ed Leya. Rio de Janeiro.
6 O estoque da Dívida Pública brasileira é composto por outros fatores além destes, como Isenção de Impostos; Refins; Sonegação e outros incentivos ao setor público ou produtivo.

7 Taxa Básica de Juros é utilizada para balizar os juros do mercado.
8 Economia real é uma expressão usada para identificar os agentes produtivos.
9 D.R.U Desvinculação da Receita da União
10 BRASIL – Decreto presidencial 9.699/19 disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9699.htm

11 Rossi, P. Dweck,E – (2016) ver: http://www.scielo.br/pdf/csp/v32n12/1678-4464-csp-32-12-e00194316.pdf

12 Ver PEC 55/2016.
13 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
14 Ver Dowbor, L. (2019) Disponível em http://dowbor.org/2019/03/ladislau-dowbor-os-pessimoscalculos-sobre-a-previdencia-3p-marco-2019.html/

15 Ver: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf
16 Ver https://www.infomoney.com.br/blogs/economia-e-politica/terracoeconomico/post/5406420/funcionalismo-publico-brasil-grafico-para-mudar-sua-visao
17 Ver https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/09/1678317-dilma-deu-r-458-bilhoes-emdesoneracoes.shtml

Por Rafael dos Santos da Silva, professor UFC-Crateús.
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra.
Contribui com os Movimentos Sociais nas áreas de formação política, econômica e sociológica.